Traumatismo ucraniano

Bom dia cambada de animal! Aqui quem vos escreve é o Gato Viajante! Seguindo d̶̶̶e̶̶̶ ̶̶̶r̶̶̶é̶̶̶ todos os conselhos, viajei para a Ucrânia esse final de semana para conhecer as maravilhas desse país antes que o Putin o transforme em um queijo suíço.

A capital Kiev (em ucraniano: Київ > Kiiv, como se pronuncia) é legalzinha, simpática e blá blá blá, mas o objetivo desse post aqui é falar de um lugar bem mais interessante: Chernobyl.

O dia em que a Terra parou.

Antes um local completamente desconhecido, hoje todo serumano do planeta já ouviu falar sobre o que aconteceu na região, mais precisamente no dia 26 de Abril de 1986. Já que todo mundo assistiu a fantástica série “Chernobyl” feita pela HBO, vou resumir rapidamente o que aconteceu no fatídico dia: Sua Mãe™ tropeçou na usina nuclear e abriu um ROMBO no reator nuclear número 4, que explodiu. Sua Mãe™ foi lançada na estratosfera e hoje é uma das luas que circulam Júpiter, único planeta grande o suficiente para mantê-la em órbita.

A cagada foi épica, uma nuvem de fumaça radioativa se espalhou pela Europa inteira e segundo Gorbachev, o incidente talvez tenha sido o verdadeiro motivo para a queda da União Soviética. Hoje Chernobyl continua isolada por uma Zona de Exclusão, um raio de 30km de distancia do centro do reator nuclear onde ninguém pode entrar, a não ser com autorização do exército e fazendo parte de um tour guiado.

Passados 35 anos desde o incidente, hoje a região pode ser visitada por t̶r̶o̶u̶x̶a̶s̶ turistas e isso movimenta bastante dinheiro para a região. Um dos m̶a̶l̶u̶c̶o̶s̶ fui eu, e agora vou contar como é passar um dia inteiro em Chernobyl.

Um típico outdoor soviético. Sou eu na foto, e o site é ̶v̶í̶r̶u̶s̶ da empresa autorizada à levar turistas pra Chernobyl

O dia começa cedo, o camburão sai de Kiev às 8h da manhã e são duas horas de viagem até o primeiro checkpoint e ponto de entrada da Zona de Exclusão: Dytiatky. Lá o exército inspeciona todos documentos do grupo e te dão um dosímetro que deve ser usado durante todo o passeio e que no final é enviado para as autoridades que monitoram a área pra saber se os turistas estão voltando radioativos ̶o̶u̶ ̶n̶ã̶o̶.

O dosímetro é uma tecnologia proprietária que só pode ser lido por um equipamento especial e ele registra a dose acumulada de radiação.

Curiosidades: não pode comer e nem beber ao ar livre em qualquer lugar dentro da Zona de Exclusão. Você só o pode fazer dentro do veículo de transporte, pois há o risco de um átomo de plutônio cair na sua comida e você voltar pra casa brilhando. Também não se pode jogar lixo no chão pois qualquer material que toque o solo é considerado radioativo e portanto, não pode ser manuseado sem antes ser examinado e tratado. Existem lixeiras especiais em cada checkpoint do exército onde você pode jogar seu lixo.

Falando sobre os checkpoints, eles delimitam a Zona de Exclusão em subzonas. Uma a 30km do reator, outra a 10km, outra a 5km e uma ultima na entrada de Pripyat. Neles, você tem que mostrar sua autorização de entrada, documentos e também há banheiros e áreas específicas para fumar.

Checkpoint de Leliv, a 10km de distância do epicentro. Só passa com ̶p̶r̶o̶p̶i̶n̶a̶ autorização.

A primeira parada é feita no vilarejo de Zalissya, que era um dos mais ricos da região e possuía umas casas melhorzinhas. Eles tiveram que evacuar de uma hora pra outra também e pra tristeza de alguém, largaram até um LADA pra trás.

Rest in Pieces

Pra se ter idéia do preju, um engenheiro soviético recebia um salário de 120 rublos por mês. Um Lada custava cerca de 10 mil rublos, ou seja, 83 meses de serviço pra conseguir juntar a grana. E depois que tinha o dinheiro, você tinha que entrar numa fila e esperar cerca de 2 anos até chegar a sua vez de poder comprar o carro. (É você Tesla?). Ah, e pra comprar uma TV também tinha que pegar fila. Era considerado um artigo de luxo e levava 1 ano pra chegar sua vez de ter uma.

Depois disso, fazemos um desvio para a conhecer o radar russo ultra-secreto, Duga-1. O radar é GIGANTESCO e servia pra detectar lançamentos de mísseis balísticos intercontinentais de qualquer parte do mundo quando estes atravessavam e ionizavam o ar da ionosfera. Custou caro PRA CARAI (cerca de 1 bilhão de rublos) e no final nem funcionou kkk. Estatal at its finest!

Duga-1 visto de longe. Repare como fica no meio do NADA, longe de olhos curiosos.

O projeto era tão secreto, que foi construído no meio do nada e mesmo dos soldados que trabalhavam na base militar dele (cerca de 1400), apenas 600 tinham autorização pra sequer chegar perto do radar.

A jiromba era tão grande que podia ser vista por pequenos fazendeiros da área, mas fazer perguntas sobre infra-estrutura militar na União Soviética era crime punível com uma viagem só de ida pra Sibéria. Don’t ask, don’t tell.

Fun fact: havia uma cidade perto do radar que era separada para as famílias dos oficiais destacados para trabalhar no radar, e havia uma escola inclusive. A escola se chamava Unidade Chernobyl 3, mas não existia nos mapas, visto que na cidade de Chernobyl só existiam as escolas 1 e 2. A estrada para o radar também não era marcada no mapa, mas havia uma parada de ônibus com os dizeres: “Summer Camp this way”.

Ponto de ônibus para o tal “Acampamento de Verão para crianças”. Aham, sei.

A idéia era dar uma disfarçada e evitar que perguntas fossem feitas, afinal, o que mais normal do que um Acampamento de Verão num lugar que só fazia frio e neve? hahaha Conta-se que se você decidisse seguir por essa estrada para ir acampar, em menos de 500 metros uma primeira patrulha militar simpática te parava e dizia:

– “E aí camarada, tudo bem? Então, o acampamento está fechado no momento e não há nada pra se ver aqui. Pode voltar por esse mesmo caminho“.

Caso o indivíduo não pegasse a dica e insistisse em continuar, logo ele era abordado por uma segunda patrulha, já não tão simpática assim, que dizia:

– “Camarada, a gente já falou que não há nada aqui. Recomendamos fortemente que você volte nesse exato momento e não prossiga por aqui…”

E se o cara fosse obstinado o suficiente e continuasse seguindo a estrada, bem… Ele não recebia um terceiro aviso. Ele nem sequer via a terceira patrulha. A terceira patrulha já tinha ordens de atirar pra matar.

Duga-1 visto de perto.

Pois bem, chegou o dia de ligar esse radar ignorantemente poderoso. Tudo preparado, os cientistas operando o equipamento, os generais atrás deles olhando pra telinha e deram a ordem: “Liga o bichão”. Apertaram o botão ON e… nada. O radar não funcionou. O general foi lá e falou: “Aumenta a potência dessa bosta e liga logo!”. Dito e feito, rodaram a chave, meteram 10MW e VRAU! O radar ligou. Ligou bonito. Ligou lindamente. Ligou suave como coice de mula.

Foi tão sutil, que quando foi ligado o pulso inicial foi ouvido NO PLANETA INTEIRO uaehueahuae. A parada interferiu com quase todas freqüências de rádio em todo globo. Desde radinhos de pilha, a TVs e freqüências militares proibidas, todo mundo ouviu o barulho que o radar emitia:

Ouça o barulho que ele fazia.

Pois é, esse agradável TU TU TU TU extremamente barulhento podia ser ouvido no mundo inteiro e inclusive, bloqueou TODAS as frequências de comunicação de Portugal. Parabéns aos envolvidos. Ninguém sabia o que era isso e através de triangulação, descobriram que ficava em algum lugar da Ucrânia e deram o apelido do sinal de “Russian Woodpecker” (pica-pau russo).

Pra piorar as coisas, o radar teve que ser evacuado rapidamente por ficar a cerca de 10km de distância da usina de Chernobyl. Ele não pôde ser demolido pois além de estritamente proibido o uso de explosivos dentro da Zona de Exclusão (suspendem partículas radioativas de volta ao ar), havia o risco de avariar a estrutura do Sarcófago montado ao redor do reator.

Outro grande prejuízo foi o supercomputador utilizado para controlar Duga-1. O projeto todo era tão secreto que toda documentação à respeito dele foi destruída durante a evacuação e ninguém sabe nem quem eram os cientistas e militares responsáveis pelo projeto. De qualquer forma, todos eles tiveram que abandonar o Radar às pressas e com isso deixaram para trás o supercomputador.

Um pedaço do console do supercomputador.

Como achado não é roubado ̶q̶u̶e̶m̶ ̶p̶e̶r̶d̶e̶u̶ ̶é̶ ̶r̶e̶l̶a̶x̶a̶d̶o̶, logo os Stalkers (como eram chamados a galera que invadia a Zona de Exclusão ilegalmente) descobriram o supercomputador ali dando sopa, sem ninguém vigiando. O único probleminha é que ele ficava em um prédio de 800m de comprimento e ninguém tinha uma mochila grande o suficiente para enfiar ele dentro.

Começaram então a desmontar e roubar os cabos, peças e componentes do supercomputador ̶p̶r̶a̶ ̶v̶e̶n̶d̶e̶r̶ ̶n̶o̶ ̶M̶e̶r̶c̶a̶d̶o̶ ̶L̶i̶v̶r̶e̶. Segundo relatos, extraíram e derreteram 22 TONELADAS só de PRATA. Metais raros como Paládio, tiraram mais de 2kg… Os caras literalmente mineraram o computador (hue!).

Bom, após a visita à Duga-1, seguimos em direção à famosa usina nuclear de Chernobyl que pode ser vista logo da estrada.

O Sarcófago que cobre o núcleo derretido do reator número 4. O canal de água era usado para arrefecer o reator.

Existe um ponto em específico a 300m de distância do sarcófago onde é possível ver de perto e tirar fotos da estrutura, e da estrutura apenas. Nenhuma outra estrutura pode ser fotografada pois as leis internacionais proíbem o registro fotográfico de estruturas de produção de energia nuclear.

Na verdade, a van turística para em um estacionamento perto do reator e lá é cheio de cachorros abandonados que são super mansos e ficam querendo comida dos turistas. Confesso que eles são lyndos e acabaram me distraindo e tirando o foco do reator kkk. Passei mais tempo olhando pros doguin do que pra estrutura, q na verdade parece um hangar de metal.

O Gato Viajante também é amigo dos ChernobylDogs :3

O atual sarcófago é uma estrutura de aço de duas camadas, que possui ar quente passando entre elas. Se houver qualquer vazamento, câmeras termais do lado de fora facilmente conseguem detectar a vazão de ar quente e podem fazer reparos de emergência. Daqui 120 anos o atual sarcófago vai precisar ser substituído e Ainda Não Sabem o que vão fazer.

Anyway, depois disso, seguimos em direção à Pripyat, a famosa cidade onde moravam os trabalhadores da usina.

A placa diz: P R I P YA T’ (ah vá)

Pripyat era uma cidade BEM próspera, e que foi construída do zero para abrigar as famílias dos trabalhadores da usina. Para se ter noção, enquanto um engenheiro normalmente recebia 120 rublos por mês, em Pripyat um TÉCNICO trabalhando na usina recebia 790 rublos por mês, quase 8x mais. A cidade era topper, moderna, planejada e bonita.

Pripyat café, antes um point super badalado, principalmente no Verão.
O mesmo local hoje, abandonado e tomado pelo mato.

Depois que toda a população de cerca de 40 mil habitantes foi obrigada a evacuar a cidade em menos de 3 horas, carregando apenas a roupa do corpo e uma malinha, a cidade ficou à mercê da natureza. As árvores cresceram furiosamente e tomaram conta do local.

Abaixo você pode ver o guia segurando uma foto tirada no exato mesmo local em 1970 e como está hoje, em 2022.

Desde de 2012 é proibido entrar nos prédios e apartamentos de Pripyat, pois muitos estão condenados e sofrem o risco de desabar, como já está acontecendo:

Edifício que desabou devido à falta de manutenção e reparos.

Passamos cerca de 2 horas em Pripyat, o suficiente para andar a cidade de ponta a ponta. O passeio termina visitando-se o famoso parque de diversões, que nunca chegou a ser inaugurado por conta da fatídica explosão.

Durante o trajeto, o guia também conta que os apartamentos foram saqueados pela própria polícia e pelo exército após a evacuação. Como dito anteriormente, Pripyat era uma cidade rica e as pessoas deixaram para trás seus dinheiros e suas posses. Alguns meses depois eles foram autorizados à retornarem para buscar 1 mala de pertences pessoais e foi quando a maioria dos habitantes perceberam que quase tudo de valor já havia sido looteado. Para evitar que o roubo continuasse acontecendo, o prefeito da região ordenou que todos apartamentos fossem esvaziados e os pertences fossem enterrados.

Um burial site demarcado, onde material radioativo era enterrado e depois coberto de cimento.

Há cerca de 800 burial sites oficiais dentro da Zona de Exclusão. Legalmente, o governo soviético demarcava os locais onde objetos e material radioativo era enterrado e concretado. Mas várias vezes, os oficiais precisam descartar um ou outro material (luvas, pás, ) e ficam com preguiça e acabavam enterrando e concretando em qualquer lugar, sem documentar. Estima-se que haja outros 800 burial sites não-documentados dentro da Exclusion Zone.

As normas sanitárias da União Europeia definem como o limite sanitário máximo, 0.3 micro sierverts/hora. Em Pripyat, a média é de cerca de 1 µSv/h, ou seja, 3x o valor máximo considerado seguro. Nesse hotspot acima, o medidor Geiger aponta 3.94µSv/h, 13x mais do que o recomendado. Convertendo para o famoso roentgen, deu cerca de 394µR/h = 0.394 mR/h = 0.004 roetgens. Percebe-se como 3.4 roetgens não é nem de perto “not great, not terrible”. É coisa pra caramba na verdade.

Terminado o passeio por Pripyat, seguimos de volta e passamos na cidade Chernobyl, única área oficialmente habitada dentro da Zona de Exclusão. Cerca de 4000 pessoas que trabalham na região usam a cidade como base, trabalhando em caráter de rodízio: 2 semanas em Chernobyl, 2 semanas fora. No local também está o único hotel onde se pode pernoitar legalmente dentro da Zona de Exclusão.

Placa na entrada de Chernobyl.

Algumas regulamentações peculiares se aplicam à cidade, como um toque de recolher permanente, onde ninguém pode sair de casa ou dirigir depois das 21h, sob risco de ser detido pela polícia e só é possível comprar álcool duas horas por dia, entre as 18h e 20h.

Em Chernobyl também há um memorial extra-oficial, feito para homenagear trabalhadores que foram esquecidos pelo governo soviético. Todo mundo considera como herói os bombeiros que atenderam ao chamado e foram as primeiras vítimas da radiação, mas há inúmeras outras pessoas que também contribuíram para resolver a crise.

No memorial está escrito “To those who saved the world” (Àqueles que salvaram o mundo).

Além dos bombeiros, centenas de médicos, enfermeiras, liquidators (os soldados que tiveram que coletar material radioativo e limpar a região), engenheiros e cientistas foram fundamentais para que a situação fosse remediada.

No monumento há um médico que carrega uma maleta, e dizem que o pessoal que construiu a estátua colocou uma garrafa de vodka de verdade dentro dela. Caso haja um Apocalipse, essa pode ser a última garrafa de vodka do planeta, e está bem guardada, só para garantir.

Na volta para Kiev, temos que passar novamente por todos checkpoints e em cada um deles é medida nosso nível de radiação para se ter certeza que ninguém está contaminado.

Todos têm que passar por essas máquinas que checam o nível de radiação.

A van também é completamente examinada, com dosímetros de alta precisão e só depois é liberada.

Ao final do tour, recebemos um certificado que diz a dose total de radiação recebida e também temos a chance de comprar lembrancinhas do local… hehe…

Certificado de Sobrevivência.

E claro, uma latinha contendo ar radioativo de Pripyat (ainda assim, mais seguro que ar de Cubatão)

O passeio no final custa €90 por pessoa (€99 com o contador de Geiger), dura 12 horas e pode ser agendado aqui. Recomendo!

Pois é isso! Espero que tenham gostado do relato e estarei disponível para responder perguntas ou tirar alguma dúvida.

Quanto a situação na Ucrânia no momento, está tudo em paz por lá e a população está tranqüila ao menos até domingo). Só quem está afobado com medo da Rússia é os Estados Unidos.

E por último, o Gato Viajante continua viajando, só tem preguiça de escrever. Recentemente estive no Oriente Médio (Dubai, Abu Dhabi, Doha), Ilhas Gregas, Polônia, e etc… Caso tenham interesse em minha opinião imparcial ou relatos sobre outros destinos de viagem, contatem o DONO DO SITE e peçam pra ele encomendar uns postes.

Por hoje é só! Valeusssss

Author: Eric Mac Fadden