Faz frio em Londres.
Saio logo cedo pra fila do pão. Acho que pelo fato das ruas estarem cobertas de neve haverão poucos gatos pingados por lá.
Ledo engano, tive de aguardar dobrando a esquina, e para voltar com um pão e meio – metade da ração de dois anos atrás (ou seriam três? As informações andam tão confusas quanto a passagem do tempo). Sorte que ainda tenho guardado há meses uma singela colher de café, para dias como esses, dias que me sinto estranhamente pensativo.
– Tenho de parecer apático – sussurro a mim mesmo na tentativa de não ser pego por nenhuma das já escassas teletelas (que outrora eram infindáveis) que ainda nos espionavam incessantemente e detectavam com uma precisão nunca vista antes nossos momentos pensantes. Duplipensar mal parecia ser possível, tamanha apreensão gerada pela Polícia do Pensamento naqueles dias.
Fecho a porta rapidamente após lutar contra fortes lufadas de uma tempestade vindoura. O dia iria ser difícil sem aquecimento há semanas.
Sento à frente de um prato de estanho vazio e manchado e me ponho a serrar a metade de um dos pães enquanto aguardava o aquecedor elétrico (que na verdade era um fogão, mas apenas recebíamos 12V por poucas horas e em quase lugar nenhum da cidade) esquentar um copo d’água para fazer minha última porção de café. “Café da Oceania” ecoava em minhas lembranças, porém poderia jurar que antes vinha de outra localização.
Eurásia que fora nossa inimiga e aliada quase que diariamente, e disso tinha certeza, pois com símbolos cravados com um prego que mantinha embaixo da mesa registrava quem era o inimigo naquela semana.
“Lestásia fora mais aliada do que inimiga” – apenas em minha mente, sem esboçar reação quanto ao fato. Tive consciência desde muito jovem a questionar e guardar apenas para mim os fatos do dia-a-dia e “notícias” sobre a interminável guerra. A guerra é que nos mantinham civilizados, pelo menos era o que todos achavam.
A teletela entoava os tradicionais hinos patrióticos matutinos e anunciavam as vitórias e a vindoura fartura. Eram oito horas, e era a hora de desempenhar o meu papel como cidadão. Trabalhava no MiniVer.
“Guerra é Paz” “Liberdade é Escravidão” “Ignorância é Força”
Foram as palavras que mais li em minha vida, e que pararam há muito de fazer sentido. Mas havia de continuar a agir da maneira correta, da maneira segura, de ser conivente com o Grande Irmão e seu protecionismo incessante. Chegara ao Ministério da Verdade.
O pão já havia sido digerido e aguardava silenciosamente pelo mingau de aveia que provavelmente serviriam na cantina – como assim fora durante as duas últimas semanas – enquanto revisava as notícias do dia e o que seria “corrigido” e o que seria “armazenado” nos buracos de memória.
Eu sabia o que acontecia, mas era frio e calculista, condicionado a não transparecer nada. Quantas pessoas que conheci desapareceram ou foram vaporizadas por falar o que pensavam, ou por ter descoberto o que o Partido fazia com todos. Mas fui forte minha vida inteira e não permitia que não entrassem em minha mente.
Eis que recebo tal notícia a ser selecionada:
“Dados do Grande Irmão foram subtraídos por um gatuno que tentara obter resgate de tais dados. O suspeito já fora capturado e se considerou culpado por trair a filosofia do Partido e ao Grande Irmão“
Sabia que deveria suprimir tal comunicado, pois mostrava que o Partido era falho e inseguro. Deveria enviar a mensagem pelo buraco da memória correto, mas assim como numa história que ouvi falar há dez anos e que nunca mais fora repetida, ignorei a existência do Grande Irmão e tudo o que representava. Me aproveitei da distância que a única teletela da sala ficava e inseri no tubo de vácuo de um colega – este que provavelmente veria mais uma vez ou duas na vida novamente – a mensagem com o vazamento das informações, da fragilidade do Partido.
Subversivo e censurador, o maior hipócrita e mentiroso dissimulado que poderia jamais ter pensado que existisse. Senti culpa na hora do almoço, enquanto devorávamos o cada vez mais ralo mingau, por estar sentado à mesa com o indivíduo que incriminara, mas apenas estaria livrando-o do sofrimento de viver – se é que poderia dizer que era uma vida – dessa maneira controlada.
Mal termino de comer o rançoso prato e quatro integrantes da Polícia do Pensamento adentram com passos firmes a cantina, vindo em minha direção.
– Acabou, fui pensar e agi errado. É o fim.
Porém, os quatro “elementos da justiça” seguram meu colega de sala pelos braços e o levam, desaparecendo pelas portas duplas e vermelhas. A culpa me consome, quase me levando ao ato de estender o braço para impedir tal injustiça causada por mim.
No dia seguinte, novamente com frio e faminto, recebo tal mensagem:
“Dados do Grande Irmão foram subtraídos por um gatuno que tentara obter resgate de tais dados. O suspeito já fora capturado e se considerou culpado por trair a filosofia do Partido e ao Grande Irmão“
Pelo visto, nada mudou.
Publicado originalmente no ODZ em 15 de fevereiro de 2017