Rituais

Aposto que cada um possui um tipo de ritual particular. Organizar as coisas no banheiro pra sair vestido, parar todos os dias e admirar seu aquário, regar plantas ou até mesmo aquela hora especial para praticar um furioso. Estes ritos não necessariamente podem ser particulares, pessoais e intransferíveis, mas podem ser aquele sanduíche noturno pra esposa, arejada planejada no quarto para a prole não dormir sufocada em dias quentes, aquela piada sem graça diária no grupo dos amigos – mas ainda sim, são rituais que lhe fazem bem.

Café

Criei agora o hábito da sopa de grãos moídasim, sopa – e toda noite tomo minha dose de cafeína por mais insano que pareça fazer isso à noite, usando uma xícara com detalhes em prata que nunca usávamos em casa. Limpar a cafeteira é um porre, mas adquirindo o hábito aos poucos nem vai mais doer no orgulho. Idem pra cozinha, deixo a pia impecavelmente limpa todos os dias – chega de anos a fio com louça boiando de madrugada.

LPs

Viciado em música, nada mais normal do que querer explorar tudo que é tipo de mídia que a humanidade conseguiu gravar sons. E após ter extensas experiências com fitas K7, tape de rolo, DAT e afins, os discos de vinil sempre serão parte de um ritual na minha vida.

Mesmo após roubarem os meus por volta de 600 discos que acumulei desde os 11 anos de idade, redescobri alguns perdidos na casa dum amigo, que me cedeu os poucos dele e umas coleções de clássicos que havia esquecido com ele também. Acabei comprando/ganhando mais uns três e fiquei com essa minúscula seleção musical – mas que ainda aprecio muito – e por isso ainda mantenho meu Technics montado na sala, basta pegar um disco, ligar o som e ouvir.

Então há muito tempo tenho o meu canto pros discos e toca-discos montado em todo lugar que moro. Limpar periodicamente, lubrificar e checar cabos são um prazer enorme, além do hobby, um rito de ligar a pickup, verificar a velocidade do prato na lâmpada – sim, há disso – tirar a proteção plástica na cápsula e descer a agulha do bolachão. Um bálsamo para os ouvidos e para o mais importante, o ego.

Valor

Com estes rituais comecei a perceber algo neles: o valor das pequenas coisas. Estas pequenas ações nós tratamos com um preciosismo enorme, o que para nós agrega um valor pessoal quase inexplicável para os outros.

Fazer meu café na espresso à noite se tornou como as antigas cerimônias para se tomar chá na China antiga, onde esse pequeno trecho do dia se torna especial e um momento a se esperar durante o período, algo importante.

Faço religiosamente todas as noites também um sanduíche para a esposa, como demonstração de apreciação, independente do humor, situação ou dia. É mais um tipo de valorização.

Escutar música em formato analógico foi como iniciei a ritualística. Música sempre foi muito importante para mim, portanto todo o formato que consigo apreciá-la, lhe dou um valor estapafurdiamente grande.

Por quê?

Darei o exemplo da música como explanação.

Hoje em dia é fácil demais para nossos morosos e preguiçosos cérebros ter de selecionar algo para escutar, colocar em algum tipo de aparelho especial e ter de tirar da caixa/liberar um braço/rebobinar algo apenas para satisfazer uma vontade que hoje, é imediata demais para sentarmos e apreciarmos como deveríamos. Simples abrir um navegador e procurar por “coletânea Ray Coniff” ou “grandes sucessos de Agnaldo Rayol” no YouTube ou Spotify e voilá: música instantânea em alta qualidade. Aos poucos o valor se perde, se torna etéreo demais como tudo na Internet, como esse post um dia.

Por isso que adquiri o hábito de procurar por arquivos em alta qualidade – além do áudio me satisfazer da maneira que desejome remete às tardes que passava fuçando em sebos procurando vinis, garimpando aquilo que mais tarde se tornaria meu gosto musical e conhecimento da área. De chegar em casa com três discos – três por R$10,00, quem diria – de ficar admirando as capas, lendo todas as informações, se tornando fã de uma banda ou artista por causa disso. Dando valor ao trabalho deles.

Estamos perdendo o mundo ao nosso redor sem aproveitar o que há nele, sem apreciação não há valor. Sem valor, não há porque estar vivo.

Author: Eric Mac Fadden